A foto acima foi a inspiração para Bernardo Fellipe Seixas escrever este conto. Veja a foto original no final da publicação.
Conto de Bernardo Fellipe Seixas
Houve um tempo em que a Praia Brava guardava segredos e uma história peculiar. Era um trecho selvagem de areias douradas e falésias nos extremos, que se inclinavam em direção ao céu azul. Neste cenário, uma mulher cujo nome se perdeu nos anais do tempo, estabeleceu seu lar no canto norte, em um casebre erguido amparado nas pedras. Essa senhora possuía um espírito intrépido e gênio difícil, que refletiam sua relação com o seu quintal. Sua comunicação com o outro morador da área, um pescador instalado no canto oposto da praia, ao pé do Morro das Feiticeiras, se limitava a palavras necessárias para trocar peixe por legumes e frutas. Ela amava aquele lugar, mas não nutria o mesmo sentimento pelos seres humanos. A solidão da praia deserta era seu refúgio, onde ela podia ouvir as ondas e sentir a dança das areias tocando suas pernas. Sua horta era pequena mas farta, com um pézinho de café, outro de cana, uma mandioca, amora, goiaba, araçá-amarelo, gabiroba e pitanga.
Contudo, quando alguém ousava profanar sua praia, especialmente os surfistas que começavam a explorar suas águas turbulentas, na década de 1970, a senhora revelava seu lado feroz. Ela não tolerava a presença de estranhos e fazia questão de demonstrar isso. Os surfistas, ávidos por adrenalina e diversão nas ondas bravias da Praia Brava, eram recebidos com olhares gélidos e palavras incisivas. A senhora não hesitava em repreendê-los com veemência, despejando sua ira verbal sem cerimônia. “A praia é minha. Vá te embora daqui!”, bradava.
Porém, suas ações não se limitavam ao verbo. Quando alguém ousava desafiar sua autoridade e cogitava acampar naquele terreno que ela considerava seu, a corajosa senhora liberava seus cães ferozes, fiéis sentinelas da área.
Com o passar dos anos, a fama da Praia Brava se espalhou, e as histórias sobre a implacável senhora se multiplicaram. Diziam que não havia atitude mais brava e destemida do que enfrentar aquela mulher corajosa e sua patrulha canina. E assim, o nome “Brava” se enraizou ali, tornando-se sua denominação característica.
O tempo avançou, e a memória da senhora Brava se tornou uma figura lendária, uma guardiã obstinada daquele canto localizado ao norte da ilha de Florianópolis. Seu legado ecoou através das gerações, e o nome da praia se perpetuou como um tributo à sua coragem e determinação em preservar a região.
No entanto, mesmo após a partida da senhora Brava desta existência terrena, a Praia Brava não deixou de guardar seus mistérios. Numa tarde de inverno no final da década de 1980, o vento sul levou um jovem surfista da Barra da Lagoa a desembarcar naquele recanto já não mais tão deserto. Ele não vinha em busca de adrenalina ou diversão, mas sim de respostas para uma antiga história que sua avó lhe contara. Segundo ela, a senhora Brava tinha um segredo guardado entre as rochas do casebre. Determinado, o rapaz partiu para explorar cada recanto, até que finalmente encontrou uma passagem secreta escondida sob as falésias, quase na divisa da Brava com a Lagoinha do Norte. Com o coração acelerado, ele adentrou a escuridão, guiado apenas pela luz fraca que penetrava pelas frestas das rochas.
O que ele descobriu lá dentro deixou-o sem palavras. Ele encontrou um pequenino baú antigo, adornado com entalhes intricados e envolto em musgo. Ao abri-lo, uma luz brilhante emanou, revelando não apenas tesouros materiais, mas também um pedaço de papel dobrado e envelhecido, deitado em um pouco de areia. A carta era um testamento da verdadeira essência da senhora Brava, com palavras de amor e dor, de solidão e esperança. Ela confessava seus medos mais profundos, suas angústias e suas batalhas internas, revelando-se não como uma guardiã impiedosa, mas como uma alma ferida e solitária em busca de redenção.
Com os olhos marejados, o surfista percebeu que a verdadeira bravura não residia na ferocidade, mas sim na vulnerabilidade de ser verdadeiramente humano. Ele decidiu compartilhar essa descoberta com o mundo, transformando a imagem da senhora Brava de uma lenda temida em um símbolo de compaixão e coragem. Assim, a Praia Brava ganhou um novo significado, não apenas como um lugar de beleza natural, mas também como um santuário de histórias perdidas e almas encontradas. E, à medida que o sol se punha sobre as sempre agitadas águas, o espírito da senhora Brava sorria, finalmente em paz, sabendo que seu legado transcenderia as marés do tempo.
“Senhora Brava” é uma obra de ficção.
-
Leia outros textos: